sábado, 16 de outubro de 2010

La Malinconia (para Glória)

Sexta-feira à tarde, chove em São Paulo.
Choveu em São Paulo, é a senha para a cidade travar.
Tomei chuva na Lapa desde as 4 horas da tarde, chuva forte. Com muita sorte não adoecerei.
Fui para o ponto esperar o 278A em direção da Penha. Trajeto Penha-Lapa, antigo trajeto na vida dos paulistanos.
Não estou com muita sorte, o ponto de ônibus está todo destelhado e o calçamento está todo quebrado: a pracinha na Rua Clécia com a Crasso está em obras!
E tome chuva!
Chega o 278A, viagem interminável, horas e mais horas. Quando entramos na marginal Tietê eu perdi a paciência, mais de uma hora entre a Ponte Cruzeiro do Sul e a Ponte da Vila Guilherme. Decidi descer.
Caminho pelas ruas do Pari, minhas ruas velhas conhecidas. Vou até o ponto descoberto aonde passa o 271P, Estação da Luz-Cangaíba.
Espero ter sorte pra chegar em casa em pouco tempo, tomar um banho quente e comer alguma coisa. Estou morrendo de fome!
E a chuva forte não dá um tempo! Chove forte das 4h00 até as 18h00, sem pausa.
Pergunto a uma moça se faz tempo que ela está esperando o ônibus, ela responde que espera há mais ou menos meia hora.
No ponto as pessoas desistem, uma a uma desistem. O ponto é descoberto, apenas eu e ela resistimos à espera, tomando muita chuva.
Na espera começamos a conversar, sobre o ônibus que não chega, sobre as chuvas em SP, sobre itinerários possíveis para economizar tempo.
Ela é bonita. Tudo nela é bonito.
Seu rosto é formado por proporções harmônicas, seu corpo é bem feito e suas formas chamam a atenção. Ela se veste muito bem, sem exageros, sem cafonices e sem badulaques.
Esperamos ainda mais meia hora debaixo de chuva, conversando sobre coisas várias sem muita importância, apenas para aproveitar a ocasião.
Depois de muita espera chega o ônibus. Eu e ela subimos: ensopados, cansados e famintos.
Na proximidade eu pude falar olhando diretamente para ela e admirando o formato de sua boca, o arranjo perfeito de seus dentes, o seu nariz, os seus olhos.
Tudo perfeito, tudo harmônico.
Mas, o homem racional dentro de mim atentou para a simplicidade daquela garota. Ela falava frases curtas e repetia muito a si mesma.
Limitação, falta de convicções? Não sei, mas não levei a sério o homem racional que vive em mim. Passei a escutá-la.
Mesmo simples assim, ela me falou que tinha apenas 17 anos, e que vivia por conta própria, trabalhando para se sustentar, desde os 16.
E ela parecia ser tão frágil e tão facilmente enganável. Mas também deixava transparecer uma boa alma.
O que teria acontecido com ela? O que será dela nessa vida?
Ela falou de seus sonhos, falou que tinha largado a escola no segundo ano do médio, mas que queria retornar o quanto antes para poder estudar veterinária.
Mais uma vez, o maldito homem racional que vive em mim julgou aquela alma: veterinária, não acho que você tenha a mínima chance!
Mas, eu continuei a ouví-la. A ver ela gesticular enquanto falava.
Seu nome: Glória!
Sim, ela era uma Glória! Um monumento à proporção entre as formas e à beleza, um monumento ainda infantil, embora viva em uma relação conjugal desde os dezesseis anos.
Mesmo quando reclama da dureza da vida ela mostra uma felicidade juvenil, uma esperança qualquer num amanhã.
Tive que descer bem antes dela, a chuva já havia passado, o trânsito fluíra, bem devagar, mas fluíra.
Ao sair, olhei pela última vez para ela e percebi que ela, envergonhada, também olhara para mim. Deixando que eu visse aquele rosto lindo pela última vez.
Há encontros que acontecem apenas muma única vez na vida.
Mas eu fico contente de um dia ter encontrado a Glória.
Já não chovia mais em São Paulo, eram nove horas da noite, cheguei em casa muito cansado.

(para Glória)

Um comentário:

K & Cia. disse...

adorei! Incrível como sua narrativa é leve, singela e que interpela a correria que impomos ao dia a dia, sempre com um sorriso. Bjs =)