segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A bela alma de Charing Cross

Anjos e demônios causavam desastres em sua cabeça. Anjos demoníacos, demoníacos desastres.
Anjos e demônios faziam com que ela passasse as noites lendo, buscando respostas para não dormir, para não fechar os olhos.
"Só sou feliz quando sonho!"
Não queria ser feliz sonhando. Aliás, não queria mais sonhar.
A vida era feita de atividades simples: tirar e colocar o vestido, tocar algumas músicas no piano, cuidar de suas flores, ler calmamente Stendhal, ir ao mercado, ler o semanário.
Mas existiam os anjos e o demônios, que traziam a felicidade, impossível neste mundo, para os seus sonhos.
E ela passava as noites lendo, com velas acesas no quarto para afastar os anjos e os demônios de sua cama.
O suor encharcava sua camisola, como se a febre noturna de um tísico se apossasse de seu corpo.
Lá fora, nas ruas, homens sem reputação caminhavam na madrugada, debaixo da neblina espessa, à busca de prostitutas famintas.
Os demônios que fossem passear lá, com esses homens!
E os anjos também! Que pousassem sua espada pesada de culpa sobre esses pecadores!
E os primeiros raios de sol começavam a brilhar ao longe, dando fim a mais uma noite de desespero. Trazendo para ela a segurança tranquila de mais um dia de sua rotina.
Livre dos anjos, livre dos demônios.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Objetos QUAse eStelARes

Sei que dormirei no relento, numa rodoviária qualquer, enquanto esperarei o primeiro ônibus que me levará para os campos nos quais você vagueia.
Na minha mochila pesada carregarei sonhos que não se desvaneceram, mas têm todo o peso da responsabilidade de não perder a única (última!) chance da vida (desta vida!).
No monitor de tevê da rodoviária passará um filme de romance açucarado, depois passará um filme de guerra dos anos 60, depois passarão desenhos no meio da madrugada.
Sentirei frio, sei que sentirei muito frio.
Quando eu chegar, com os olhos te farei um pedido, que será feito por outra pessoa, que te suplicará, em meu nome: "Deixe-o entrar!"
Sei que você relutará, que sentirá ódio de mim por eu ter feito você odiar a si própria. Mas, deixe-me entrar!
É tudo que quero, é tudo que pedirei. Mesmo que tudo o que eu faça seja virar as costas e sumir, para sempre de sua vida, no instante seguinte.
Sei que dormirei numa rodoviária fria, vendo romances se desenrolarem na tela e sonhando com o momento em que você me dirá: "Entre!"

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Maiuni (texto 1)

Chove. Todas as lágrimas que já secaram em mim, há muito tempo, são derramadas pelas nuvens.
Alento, único presente que a vida deu pra mim, o céu pesado, carregado, os pingos de chuva.
O que há, além do egoísmo, nessa vida?

(SP, 16/11/10)

* * *

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

você densa, você substancial

Vamos agora complicar um pouco mais as coisas!
Você é alguém, isso é claro! Como e porquê você me afeta e me atrai é o grande mistério para mim.
Vejo você, você tem forma, peso, altura, traços característicos, emite sons etc. Mas, como pode isso ser atraente, se todas as pessoas fazem isso o tempo todo e quase nenhuma delas me afeta?
Talvez, por ser um corpo, exista em você vetores que exerçam certo poder de atração sobre mim. Sim, talvez seja isso: um jogo de atração e repulsa cujo o qual eu sou incapaz de exercer controle.
Vetores, linhas de força e de fraqueza, pontos de clivagem e de fraturas; poder de atração e repulsa, magnetismo.
Mas, pouco sei de você densa, de sua densidade.
Isso pra mim é um mistério e só sou capaz de conjecturar sobre aquilo que não sei: o simples ver nada revela.
Agora, existe também o mais misterioso que é você substancial.
Nada sei sobre sua substância, sobre o que ela guarda ou o que me atrai nela.
E se sua substância for a minha negação? E se for o meu duplo?
Como posso ter a mínima idéia do que seja, de qual seja a sua substância nesses tempos tão artificiais em que vivemos?
Nem dou conta de respostas sobre a minha própria substância, daquilo que substancialmente eu seja. Imagine fazer lucubrações sobre a sua.
É apenas injusto de minha parte deixar tudo o que eu imagino fora de seu conhecimento.
É tudo tão louco e fora de sentido, tão insensato que eu acho que seria capaz de te divertir por alguns momentos.
Mas, em breve, você saberá de tudo.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Considerações acerca do atropelamento de um cão

São Paulo, quarta-feira de sol. Avenida Ipiranga, de um lado o velho hotel Hilton, do outro lado o Copan, dois pontos de referência da cidade, dois ícones do Centro Velho que guardam o glamour de décadas passadas.
Tudo tranquilo, vejo uma mulher que para no semáforo para aguardar o sinal fechar e ela poder atravessar na faixa.
O trânsito é intenso, motos, ônibus e carro disputam todo e qualquer milímetro para tentar uma ultrapassagem arriscada.
São pouco mais de 10 horas da manhã, a cidade apressada ainda desperta com alguma preguiça.
A mulher aguarda o farol abrir acompanhada de um cãozinho que me chama a atenção. É um bulldog todo preto, ainda novinho, orelhas apontadas e boca bem larga. A aparência do cão (bem feinho na minha opinião) faz com que eu me distraia olhando para aquela cena. O cão parece um pequeno diabo-da-tasmânia e está parado ao lado de sua jovem dona, que conversa com um transeunte.
Mas, em menos de um segundo o cão atravessa a avenida em disparada, talvez atraído pelos cães que passam do outro lado. É o segundo necessário para o pequeno cão ser atropelado.
Isso me trouxe uma frase interessante: Quem imagina que um cão tem algum juízo, certamente tem menos juízo do que um cão.
Estamos vivendo um período de imbecilização das pessoas. As pessoas cada vez mais colocam valores antrópicos em seus animais de estimação: amor, juízo, intuição, percepção e tantas outras bobagens. Tudo estimulado por uma literatura, um cinema e uma mídia de quinta categoria, que faz com que as pessoas imaginem que um cão ou um gato são dotados de características que eles absoltuamente não têm!
A principal é o juízo!
Isso foi um caso clássico de displicência da dona do cão, que julgou que o cão se manteria ao seu lado até o momento de atravessar a rua. Claro, é uma dedução trivial! Trivial quando vinda de um ser humano!
O cão, atraído pelo que estava do outro lado da rua não fez nenhum julgamento antes de bater em disparada para o outro lado!
O comportamento é comum dos animais: a falta de medo! Ele queria estar do outro lado, pouco importa se dezenas de carros passavam apressados pela avenida.
O homem, já possui este medo, pois ele faz parte do nosso juízo! Nós aprendemos à antever todas as possibilidades antes da execução de um ato! Nós julgamos, e se o risco for maior do que a recompensa, nós desistimos.
Parece ser simples, mas o juízo se constrói ao longo da vida.
Algo que reparo bastante é que mães e pais acham que seus filhos bem pequenos já são dotados de juízo. Deixam eles livres próximos de vãos do metrô e dos trens, em pontos de ônibus muito movimentados e outros locais arriscados. E não é necessário mais do que um segundo para que alguma tragédia aconteça.
Mas, no caso do ser humano, após os 3 anos, uma criança já é capaz de avaliar o risco de um ato impulsivo. Não é preciso ela ver outra criança atropelada para ela saber que um carro pode matá-la.
Mas, com um cão não é assim.
E aquela jovem, que estava com a guia de seu pequeno cão na mão, deve ter se arrependido muito de não encoleirá-lo ou pegá-lo nos braços para poder atravessar a perigosa avenida.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

álea, luna

Faço teceduras, tramas, urdiduras, desenhos e variadas cores
Anulo a minha presença e anelo a tua
Sou um monte de pedaços espalhados em busca de uma solução
Para o meu enigma, para o meu quebra-cabeças
Espero a junção dos corpos, a próxima conjunção dos corpos
Desenho, faço rabiscos, imagino e imagino mais
E eu tanto sei de mim, que quero te dizer que sei
Que com o maior prazer eu gosto de dizer "não sei"
Não sei de nós dois, não sei de amanhã
Só sei que a imagem se apaga na memória, as luzes ficam mais fraca
Já não me lembro mais dos calendários 2006, '07, '08
Só sei que tramo, que teço, que me inspiro
Escrevi uma história, não sei se você gostaria de ler
Tinha o seu nome nela, não sei se você gostaria de ver
Era uma história sobre você, não sei se um dia você gostaria de conhecer